Caçada





O momento
feriu a asa de um pássaro
em movimento.

O tempo sempre caça
e alcança tudo

o que passa.

(Nem sangrou
a asa ferida).


A morte não perdoa a vida.

Tarefas (Clênio Pereira)*



Não vim à vida amansar carneiros.
Vim certo, ligeiro, trazer tarefas de mim,
prostrado, confuso ante a efervescência
mística da vida.

Não estou de mãos atadas.
Conservo as boas falas
de todos os velhos amigos,
as lembranças dos doces de leite
e do requeijão polpudo e cheio de sardas.

Dispus, aos companheiros, da minha esperança
e encomendei outra aos novos amigos.

As mulheres que me experimentaram o gosto de mel
não esgotaram por completo
suas reminiscências de fel.

Não vim à vida para compor régias canções,
revolver dogmas da aritmética,
escudar os heróis em sua benignidade de órfãos,
Não quero registrar as guerras,
inventos e desajustes deste tempo.

Não recebi um recado
do motivo de viver.
A cada tarde,
sorvo uma dose de atrevimento e me recordo
de alguns nomes que geografaram minha existência.

Não tenho certeza,
por isso que vim à vida

e luto por ela.


* Poema de autoria do meu irmão Clênio Pereira, falecido em 1984, aos 25 anos de idade.

Travessia (para meu irmão Clênio, poeta, in memória)






Atravessaste a vida
como um menino travesso
atravessa uma avenida
num dia de festa; 

como um sino
atravessa a tarde,

como uma imagem
atravessa a saudade;

atravessaste a vida
como um corisco,
que, entre nuvens,
se arisca dos olhos;

atravessaste o tempo:

como um menino
apascentas um rio
                      sem margens.

Outro de Mim







A vida
me alucina
e me espanta,

cada esquina
arma a garganta
do imprevisto.

E eu
resisto em mim
a gula, a fila,
o alvoroço.

E eu
assisto em mim
a chama, a fenda,
o sol posto.

E me ilumino
e me alumbro
e me contamino
por pouco.


E eu
me salto em mim
me solto, absorto,

e quando volto
passo por mim,
                             oposto.

Aniversário

Hoje, dia primeiro,
é meu aniversário.

Dois anos se contam
inversamente:

mais um para trás, 
menos um pela frente. 

E nesse jogo passageiro,
em que dá as cartas o calendário,

o tempo é meu parceiro
e também meu adversário.

Poeta






Poeta não é quem
escreve  bem arrumado

feito quem veste o poema
de terno e bravatas,

nem é quem
arranja belezinhas
de nadas.

Poeta
é quem dá susto
nas palavras.

Poeta da Criação






                                                
Deus pensou poesia
no silêncio da criação.

Pensou coisas grandes
e pequeninas.

Pensou rios e montanhas,
e o luar sobre as campinas.

Pensou o antes,
o aqui, o agora e o distante.

Pensou o olhar
e a imaginação, 
que tudo alcança.

Mas as mães e as crianças,
as flores, os passarinhos
e a esperança
                          são as melhores ideias de Deus.

Pregão






Quem dá mais,
quem dá mais
por Minas Gerais?

Use Minas,
abuse de Minas,
tire as minas de Minas:
deixe Minas despojada,
só a terra pelada,
só a gente desconfiada.

Quem dá o lance  primeiro?

Por trinta dinheiros
(mais as propinas)
entregam-se as Minas
dos mineiros.

Dou-lhe uma
dou-lhe duas
dou-lhe três:

levem a Usiminas
desta vez.

E depois, mais tarde?
Vai a Serra da Saudade!

Uai, e então?
Vende-se o Mineirão!

E o que mais entra no confisco?
O Rio São Francisco!


Tudo se vende,
tudo se embrulha:
o que acham da Pampulha?

Quem dá mais um
um bocadinho
pelos profetas
do Aleijadinho?

E o que não for
para o exterior
por menor valor
toma-se por aqui:

Unaí
pode ir para
Canapi.

Urucuia vai pras cucuias.


Minas não há mais,
Velho Drummond.

Estão desmontando
Minas:
Minas sem montes,
sem riachos, sem matos,
sem belos horizontes.

Estão queimando Minas,
fazendo Minas de carvão.

Estão aterrando nascentes,
secando brejos,
estão jogando Minas no frege.

De todo lado vem a corja:
uns levam o ouro,
outros o aço, outro o ferro;
uns matam as matas
e semeiam a soja,
plantação ligeira
de lucro certo.

Minas é fértil:
em se plantando tudo dá,
desde que seja para exportar.

Não importa no que
a terra vai virar:

Quem vê o sertão
de dentro e de perto
não vê verde,
já olha deserto.

Ó Minas Gerais,
ó Minas Gerais,
quem te viu
não te vê jamais.

E agora, José?
E agora, mineiros?

Que coisa medonha!

Perdemos tudo?
o orgulho,
a história
a vergonha?
 
Nota: este poema foi elaborado, em 1990, na época da privatização da Usiminas pela equipe do então presidente da República Fernando Collor de Melo, e foi publicado em diversos jornais de grande circulação nacional. 
Na época utilizei de ironia para criticar a possibilidade absurda da privatização de outras coisas como a Serra da Saudade e o Rio São Francisco. Agora, li há alguns dias na Folhaonline (Folha de São Paulo)  que o presidente interino Temer estava pensando em privatizar o Rio São Francisco.  Vi, então,  que o que parecia absurdo agora pode-se tornar realidade. Assim me ocorreu postar este poemas.